sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Heróis do Luvuei - Lutembo, 15 - 11 - 1973

"Corisco"Alferes/Correia ao centro, um dos heróis do 15 de Novembro 1973

Entre o Luv
uei e o Lutembo O inferno é, em termos de interpretação “compêndica” e religiosa, um lugar destinado ao suplício dos condenados. Supostamente um lugar onde se tem de sofrer muito, um lugar tenebroso de caos, desordem e confusão. Pode também ser a morada das almas penadas depois da morte, especialmente das almas que em vida fizeram a apologia de coisas tidas por menos boas.

Que mal fez este grupo de homens para merecer tal sorte? De que afrontas eram acusados? Que género de pessoas merecem a guerra? Fazê-la, senti-la e, pode dizer-se, alimentá-la e prová-la? Quem se expõe ou arrisca tanto assim, ou mesmo tudo, recebendo, por contrapartida, tão pouco?

As informações existentes davam conta de grandes movimentações de numerosos guerrilheiros nas zonas do Luvuei, Lutembo, até Gago Coutinho. Esta situação deu lugar à preparação de uma operação designada como Barbado E/H, que iria marcar definitivamente e inexoravelmente a Companhia, demonstrando que o azar estava arreigado, que estava firme pela raiz, colado e entranhado…

Quatro grupos, num total de cem militares, saíram do Luso na manhã no dia catorze de Novembro, em direcção a Gago Coutinho, e foram lançados em determinadas zonas amplamente estudadas, com objectivos perfeitamente definidos, constituindo a primeira parte da operação.

Os grupos, número um, comandado pelo “Diabo”/Alferes Barbado (tinha o nome da própria operação) e número três, comandado pelo “Corisco”/Alferes Correia, seguiram no dia seguinte, quinze de Novembro de mil novecentos e setenta e três, com o mesmo destino.

"Corisco” iniciara dias antes a leitura de um livro cujo autor apreciava muito, Frederick Forsythe, denominado O dia do Chacal. O objectivo do Chacal era, no livro, mais tarde transformado em filme, assassinar o General de Gaule, Presidente da Republica Francesa.

O objectivo deste grupo de homens, comandados por “Diabo” e “Corisco”, não era assassinar, porque o termo não é utilizado no contexto da guerra, mas, naturalmente, que não iam cumprimentar, ou dar as boas vindas, a ninguém. Iam, mais uma vez, para uma situação de confronto directo, desta vez na zona de Gago Coutinho. Não sonhavam, porém, que o confronto iria ser tão directo assim, quase um frente a frente, um cara a cara, e que teria lugar bem mais cedo do que seria previsível.

Cinco viaturas unimog saíram então do Luso após a alvorada, com destino a Gago Coutinho, transportando dois grupos de comandos, o que concretamente significa cinquenta militares.

Depois de percorridos cento e poucos quilómetros, entre as povoações do Luvuei e do Lutembo, um numeroso grupo de guerrilheiros perpetrou um ataque sobre as nossas tropas, infelizmente, uma das mais bem sucedidas emboscadas de que há memória sobre as tropas especiais, não só pelo número de feridos e mortos que causou, mas também pelos estragos materiais que foram infligidos.

O inferno teve inicio com um disparo, provavelmente, de rocket, que atingiu a primeira viatura, causando morte imediata ao respectivo motorista e ferimentos no Barbado e a outros militares, bem como outras mortes.

A esse disparo seguiram-se milhares de disparos de espingardas automáticas kalashnikov, de fabrico russo (naquela altura dizia-se de fabrico soviético) e de bazucas.

As viaturas circulavam ligeiro e, na altura, a uma distância de trinta a cinquenta metros umas das outras. O sol fustigava, pelo que todos viajavam meio adormecidos. “Corisco” lia o Chacal, naquela cena em que o mesmo dispara sobre o General de Gaule, na altura em que este fez uma vénia para cumprimentar um antigo combatente, que supostamente ia ser condecorado por préstimos, quando Chacal prime o gatilho. A vénia salvou o General da tentativa de assassínio, pois a bala passou-lhe por cima da cabeça.

“Corisco”, na terceira viatura, tentou perceber o que se passava e cometeu um erro que lhe ia custando a vida. Levantou-se no unimog, enquanto retirava em simultâneo a espingarda G3 dos respectivos apoios, no momento preciso em que o motorista travou a viatura, tentando evitar a da frente que, entretanto, diminuíra a marcha e travara também.

“Corisco” saiu pela “borda” fora desamparado, num salto descontrolado que terminou no asfalto. Estatelado, sentiu uma dor profunda na coluna lombar e rastejou, deixando-se cair pelo declive formado pela própria estrada, mas para fora desta.

Tentou com dificuldade movimentar-se. As pernas não lhe obedeciam direito; estavam estranhas, Contudo, a quantidade de disparos impediu que o grupo executasse grandes manobras. O número de disparos efectuados contra as viaturas, num claro intuito de as destruir, fez, crer, rapidamente, que os agressores não tinham qualquer intenção de deixar sair dali ninguém com vida.

A confusão instalada gerou momentos de inquietação. Percebeu-se de imediato que era necessário pedir ajuda muito rapidamente.

“Corisco” estabeleceu então uma estratégia. Chamou o Nunes, militar em quem depositava total confiança, e ordenou-lhe:

- Vai ao unimog tentar recuperar o rádio.

Num “golpe de mão” perfeito, o Nunes trouxe o rádio, enquanto eram atiradas para o lado oposto algumas granadas para dissuasão e protecção da manobra. “

Corisco” observou rápida e minuciosamente o rádio de alto a baixo e verificou que o mesmo não fora atingido e estava em boas condições. “Deus é grande”, pensou. Será que Ele nos vai ajudar a sair daqui? Mandou estender as antenas nas direcções correctas, processo que foi feito todo a rastejar, pois levantar a cabeça, podia ser fatal, tal a quantidade de disparos que se faziam sentir e iniciou o contacto rápido com o posto de comando.

O Capitão Ovídio Rodrigues, juntamente com o Furriel Trindade, militares sobejamente respeitados, estavam do outro lado da linha.

- Óscar! Óscar! Aqui “Corisco”. Escuto. Ah Óscar! Óscar! “Corisco” chama. Diga se me ouve. Escuto. “Óscar! Aqui “Corisco”! Porra! Diga-me se me ouve c`um caraças!

Os segundos pareciam dias. As balas sobrevoavam as cabeças. Percebia-se já a existência de algumas baixas, pois alguns companheiros jaziam inertes na estrada de asfalto, até que, após algumas tentativas, o contacto foi conseguido. -

Ah “Corisco”! Óscar à escuta. Informe.

Óscar! Aqui “Corisco”! Urgente! O grupo está a ser atacado. É uma emboscada e são muitos “ines” (inimigos)! É necessária ajuda imediata! O grupo tem vários “mikes” (designação codificada para mortos). Escuto…

- Quantos “mikes” fizeram?

- Temos “mikes” e vários “ foxtrotres” (feridos). Os “mikes” são nossos, porra! Os mortos são homens nossos! Escuto…

A situação era difícil de entender por parte de quem ali não estava, pois nada fazia prever uma circunstância daquele tipo. Uma emboscada no asfalto, a tropas comando bem armadas era impensável, daí as renitências e reticências do outro lado do fio.

No entanto depressa perceberam.

O que de facto importava era haver, sobretudo, comunhão de espíritos entre os comunicadores, de modo a que entendimento se fizesse célere. Especialmente quando se está com a corda na garganta.

- Certo “Corisco”! Pronto, pronto, já entendi. Informem as vossas coordenadas rápidas.

- Estamos na estrada, exactamente entre os dois aquartelamentos do Luvuei e Lutembo – retorquia “Corisco”.

- Afirmativo. Vamos já para aí. Segurem-se! Aguentem-se com esses gajos mama sumé. Terminado.

As coordenadas, entretanto, fornecidas, nunca tinham chegado até eles em situação tão complicada. O mapa jazia aberto no chão de areia. A bússola, timidamente como sempre, apontava o norte. As latitudes e longitudes, apesar de eminentemente claras, eram perfeitamente prescindíveis, porque a indicação mais importante era a posição entre o Luvuei e o Lutembo. -

Não demorem! Não demorem! Terminado.

A ajuda demorou mais de que uma eternidade.
Quem esteve debaixo de fogo intenso durante uma hora entende o que é, afinal, uma eternidade.

Entretanto, quando os grupos saíram das viaturas, um grupo de cinco comandos guinou para o lado contrário, ou seja, o lado onde estavam os guerrilheiros. Era o grupo do Furriel Figueiredo, num total de cinco homens. Estavam do lado de lá, acachapados junto ao solo, utilizando algum arvoredo baixo – para não serem vistos.

Havia então que resgatá-los; havia que os tirar dali.

Foi então que se estabeleceu a estratégia de lançar para o lado contrario, e bem para além do grupo, algumas granadas e dilagramas e, enquanto o material explodia, os homens passaram rapidamente para o lado de cá, engrossando e organizando a defesa.

Após os contactos para pedir ajuda, “ Corisco” espreitou de novo por baixo do unimog que começara a incendiar-se, provocando fumo intenso, e decidiu que tinha que ir resgatar a metralhadora que ficara no unimog, nesta altura já em chamas do lado contrário ao nosso. Nunes novamente, um verdadeiro herói. -

Vai buscar a metralhadora! Tem de ser! É a nossa salvação!

Sem pestanejar, semi-encoberto pelo fumo e com a ajuda do lançamento de algumas granadas e disparos para protecção, recuperou-se a arma.

Os gritos dos nossos “emboscadores” eram muitos e muito intensos. Quase que sentíamos a sua respiração.

- Vão morrer – diziam – Vão morrer todos. Ou melhor: “Vá morrê tódes…Branco vai morrê memo hoje”.

Um dos unimogs apitava, emprestando àquele ambiente um espectáculo assustador, uma atmosfera sinistre de pânico latente. Uma buzina havia ficado “colada” e apitou de facto até que o fogo a consumiu. Graças a Deus que a maldita da buzina se calou.

Passaram-se dias, talvez meses, ou será que não foram anos, e aquele som da buzina foi permanecendo audível no subconsciente de “Corisco”!

Durante breves instantes, “Corisco” viu um barco de cor preta atracar lá longe na costa leste dos Estados Unidos com pessoas que não quiseram fazer a guerra. Tinham razão. A opção de vir para o inferno fora só dele. Que raio de aposta…Que raio! Que fazia ele ali? Até hoje não obteve resposta…

Foi então que, depois da metralhadora HK 21 começar a fazer estragos, se apercebeu que, aos poucos, o domínio da situação passava para o lado dos comandos e que uma ténue hipótese de sobreviver começava a ganhar forma.

Chegavam informações: a primeira que o Gouveia, um excelente soldado, estava morto e que o Silva não estava nada bem; que o Furriel Félix era um dos que estavam caídos na estrada e que estava morto. Outras informações imprecisas chegavam a “Corisco” no meio daquela confusão. Onde estaria o Barbado? O que lhe teria acontecido? “Corisco” não o vira desde que aquilo tinha começado.

O nome de guerra do Barbado era como já foi referido “Diabo”, e durante toda aquela confusão “Corisco” não se esquecera um momento dele. Gritou mesmo por ele:

- Diabo, Diabo, Diaboooo, Diaboooo, onde estás? Não obteve resposta.

Que faço eu? – Interrogou-se “Corisco” – Como é possível estar a chamar, a berrar mesmo pelo Diabo, quando o que urgia é que a influência Divina, a Mão de Deus preponderasse e alterasse aquela delicada situação?

Até que o “Diabo”, digo Barbado, apareceu desfraldado e com a arma em punho, sangrando do baixo-ventre.

- Morremos aqui todos, Correia! Temos que ir a eles! Vamos reagrupar…

- Já mandei vir ajuda – referiu “Corisco” - temos que aguentar.

Aos poucos, o controle da situação foi restabelecido, mas ajuda, nada…

Alguém chamara, entretanto, a atenção de “Corisco”.

- Chefe! – Dizia - Tem sangue no camuflado!

Meteu a mão esquerda por baixo do camuflado e, ao retirá-la, vinha de facto suja de sangue; qualquer coisa de anormal se passara na zona do glúteo esquerdo superior.

- Franganito! Atira duas roquetadas para aqueles cabrões! Acaba-me com aquela raça!

Assim foi. Após dois consequentes estrondos, gritos e um silencio sepulcral, percebeu-se que as coisas estavam a mudar.

Entretanto, quem quer que estivesse do outro lado já perdera a sua oportunidade. Tinham tido o seu ensejo, isto é: a convicção de “Corisco”, de uma forma realista e fria, é de que se eles tivessem aproveitado o factor surpresa que esteve totalmente do lado deles, se tivessem investido logo que despoletaram a emboscada, com a quantidade de guerrilheiros que havia do outro lado, teriam provocado mais estragos.

Foi um cenário que felizmente não aconteceu. Pelo contrário. Se tivesse acontecido, seria bem possível que o autor destas crónicas jamais tivesse tido a oportunidade de as escrever.

Deixaram reagrupar e agora eram os atacados quem, de uma forma mais ordenada, controlava a situação.

- Chefe, parece que estão a fugir. Vamos a eles?

- Não, não vamos! Deixem-se ficar! Mantenham as vossas posições até recebermos ajuda.

“Corisco” começava a perceber de guerra de guerrilha, uma vez que, não raras vezes, em situações idênticas, os guerrilheiros armadilhavam a zona onde tinham estado. Por vezes, emboscavam-se de novo. Aprendiam depressa…

“Corisco” costuma dizer em surdina, a quem priva mais de perto com ele, que os seus trinta e poucos anos de silêncios sobre esta matéria, são também trinta e poucos anos de lucro. Costuma até dizer que já morreu lá atrás, diversas vezes, ou pelo menos seguramente uma vez…desta vez. Foi, sem duvida alguma, a pior experiência de vida e quiçá a pior experiência de todos aqueles que bravamente resistiram àquela investida.

O livro do Chacal desapareceu durante a contenda, talvez tivesse ardido conjuntamente com o unimog, tal como desapareceu, durante muito tempo, o sorriso da face de “Corisco” Durante muito tempo, uma marca indelével manteve-se latente, como um registo fotográfico, encurtando-lhe o sono, alterando-lhe o humor. Durante largo tempo teve dificuldade em esboçar sequer um sorriso, um simples sorriso.

Os helicópteros com ajuda militar chegaram entretanto, já os guerrilheiros tinham abandonado a luta, deixando atrás cinco comandos mortos, quinze camaradas feridos e um estado de sítio macabro e sinistro. Deixaram também atrás um grupo de heróis, extenuados, amargurados, mas orgulhosos. Sim, um grupo de valorosos heróis a quem se deixa neste capitulo, em particular, um reconhecimento sem medidas. Há que lhes dizer sempre:

- “Audaces Fortuna Juvat” (A sorte protege os audazes). Há que lhes gritar estridentemente: -“Mama Sumé (Aqui estamos…).

Os helicópteros levaram os feridos, incluindo “Corisco”. O Tratamento das mazelas custou-lhe cerca de um mês de internamento e tratamentos no Hospital Militar de Luanda. Ainda hoje algumas mazelas permanecem disfarçadas no meio das rugas que o tempo vincou, no íntimo dos seus sorrisos tímidos, no âmago da sua existência, no seio das suas recordações.

Não raras vezes, sobretudo quando a vida se complica um pouco com as suas manobras, “Corisco” relembra-se, querendo relevar, que complicada, complicada mesmo, fora a situação narrada neste capítulo.

Há pouco tempo, num ímpeto deliberado e incontrolável, quis acabar o livro que não acabara de ler, o dito Chacal… Procurou-o nas estantes das livrarias, sem sucesso, encontrando-o finalmente num alfarrabista. Releu-o de uma forma sôfrega e sentiu um calafrio quando chegou ao ponto em que havia ficado, há mais de trinta anos. Ficou triste ao verificar que o Chacal também morrera…

(Transcrição do livro a Fisga, cujo autor viveu e sofreu na pele esse dia de inferno)

2 comentários:

gilfigueiredo disse...

Luvuei e lutembo terras do fim do mundo.Não obstante as contrariedades que passamos de abril 72 a out. 73 é um sítio onde tenho vontade de visitar logo que existam condições para lá chegar.tinha acabado de chegar ao luvuei e na qualidade de furriel de transm. lesloquei-me ao lutembo, na zona do rio lumai sofri um acidente que me levou a ser evacuado de avião do lutembo para o luso, pelo que me dizem deve ser no local muito próximo onde sofreram o vosso ataque.Os comandos durante o tempo em que estivemos naquela zona fizeram várias operações e sabiam do potencial militar dos guerrilheiro.Não posso precisar datas de momento, mas por início do ano de 73 os comandos vieram para o luvuei , no dia seguinte partiram para a zona do lutembo em hélios e tiveram um contacto directo com os guerrilheiros,saímos muito mal desta operação porque o in conseguiu abater o hélio canhão e fez um morto, o piloto capitão que comandava a esquadra de hélios, lembro-me de uma situação particular. o capitão e demais camaradas estavam no Luvuei,quando chegou o momento de partir para a pista todos os elemento avançaram menos o capitão que tinha ficado trancado na casa de banho,quando eu passava ao lado da casa de banho diz-me o capitão por um janelo, furriel tire-me daqui porque fecharam a porta por fora. passado cerca de uma hora de levantar e porque controlava-mos a operaçao via rádio tomo conhecimento do ataque a hélio e da morte do capitão.Moral destas histórias reais. Se os nossos governantes e todos os que estavam á sua volta tivessem mais visão política podiam e deviam de poupar-nos estes sacrifícios

Manuel Aldeias disse...
Este comentário foi removido pelo autor.